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Isonomia, Generalidade da Lei Penal e Discriminação Legislativa:


Uma Análise Comparativa entre o Estatuto da Pessoa Idosa e o Chamado Estatuto da Simetria

Resumo

O presente artigo analisa, sob a ótica constitucional, a distinção jurídica entre o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) e o recente projeto legislativo aprovado pelo Senado Federal, popularmente denominado “estatuto da simetria” ou PL da dosimetria penal, voltado à revisão de penas aplicadas aos condenados pelos atos ocorridos em 8 de janeiro. A partir dos princípios da isonomia, da impessoalidade, da generalidade da lei penal e da vedação a privilégios legislativos, busca-se demonstrar que, embora ambos promovam tratamentos diferenciados, apenas o Estatuto da Pessoa Idosa encontra respaldo constitucional pleno, por se basear em critério objetivo, universal e estrutural de vulnerabilidade. Em contraposição, o diploma penal recente apresenta traços de seletividade legislativa, suscitando relevantes questionamentos quanto à sua compatibilidade com o Estado

Democrático de Direito.

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 inaugurou, no Brasil, um modelo de Estado comprometido com a promoção da igualdade material, da dignidade da pessoa humana e da generalidade das normas jurídicas. Nesse contexto, o legislador passou a dispor de instrumentos normativos destinados a corrigir desigualdades estruturais, autorizando tratamentos jurídicos diferenciados sempre que fundados em critérios razoáveis, objetivos e universais.

Recentemente, a aprovação, pelo Senado Federal, de projeto de lei voltado à revisão da dosimetria penal aplicada aos condenados pelos eventos de 8 de janeiro reacendeu o debate sobre os limites constitucionais da diferenciação legislativa, sobretudo quando direcionada a um grupo determinado de condenados. O presente artigo propõe uma análise comparativa entre esse diploma — denominado por alguns de “estatuto da simetria” — e o Estatuto da Pessoa Idosa, a fim de evidenciar as distinções jurídicas entre proteção constitucional legítima e favorecimento penal seletivo.

2. O princípio da isonomia e a legitimação da diferenciação normativa

O princípio da igualdade, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, não se limita à igualdade formal. A doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que a isonomia exige tratamento desigual aos desiguais, desde que fundado em critérios racionais e constitucionalmente justificáveis.

Nesse sentido, a diferenciação normativa somente se legitima quando:

a) baseada em critério objetivo e verificável;

b) aplicável de forma geral e impessoal;

c) destinada à correção de desigualdade estrutural;

d) desvinculada de destinatários previamente individualizados.
Esses elementos servem como parâmetro para a análise comparativa proposta.

3. O Estatuto da Pessoa Idosa como expressão da igualdade material

O Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) constitui exemplo paradigmático de discriminação positiva constitucionalmente legítima. Ao estabelecer a idade mínima de 60 anos como critério de incidência, o legislador adotou parâmetro objetivo e universal, voltado à proteção de grupo reconhecidamente vulnerável.

Trata-se de diploma normativo de caráter geral, impessoal e permanente, que não se vincula a condutas específicas, fatos históricos determinados ou decisões judiciais individualizadas. Seu fundamento reside na dignidade da pessoa humana e na necessidade de compensação das limitações físicas, sociais e econômicas inerentes ao processo de envelhecimento.

Assim, o Estatuto do Idoso não cria privilégios, mas concretiza direitos fundamentais, reforçando a igualdade material e a proteção social previstas no texto constitucional.

4. O chamado “estatuto da simetria” e a seletividade penal

Diversamente, o projeto de lei que altera a dosimetria das penas aplicadas aos condenados pelos eventos de 8 de janeiro apresenta delimitação restritiva, tanto temporal quanto subjetiva. O benefício legislativo não decorre de condição pessoal permanente (como idade ou saúde), mas de um recorte histórico específico.

Essa característica suscita questionamentos relevantes sob a ótica  institucional, pois:

a) rompe com a generalidade da lei penal;

b) cria distinção entre condenados em situações jurídicas equivalentes;

c) individualiza beneficiários com base em evento determinado no tempo;

d) aproxima-se de legislação penal de caráter excepcional.

A lei penal, enquanto instrumento de contenção do poder punitivo estatal, deve ser abstrata, geral e impessoal. Afastar-se desses parâmetros pode conduzir à erosão da isonomia e à instrumentalização política do sistema penal.

5. Comparação jurídica entre os diplomas

Enquanto o Estatuto da Pessoa Idosa promove diferenciação para proteger vulneráveis, o chamado “estatuto da simetria” diferencia para favorecer determinado grupo de condenados.

A distinção não é meramente formal, mas estrutural: um diploma concretiza direitos fundamentais; o outro intervém pontualmente na execução penal de casos específicos.

Sob a ótica do constitucionalismo democrático, a proteção social baseada em critérios universais fortalece o Estado de Direito; já a concessão de benefícios penais seletivos fragiliza a confiança na igualdade da jurisdição penal.

6. Conclusão

A análise comparativa demonstra que não há equivalência jurídica entre o Estatuto da Pessoa Idosa e o chamado “estatuto da simetria”. O primeiro representa expressão legítima da igualdade material e da proteção constitucional a grupos vulneráveis. O segundo, ao restringir seus efeitos a condenados por fatos específicos, suscita dúvidas quanto à observância dos princípios da isonomia, da impessoalidade e da generalidade da lei penal.
Em síntese, proteger grupos estruturalmente vulneráveis é manifestação constitucionalmente legítima do poder legislativo; selecionar beneficiários penais com base em eventos determinados é prática que demanda rigoroso controle de constitucionalidade.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto da Pessoa Idosa).

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: RT.

Carlito da Cunha Santos

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