Conflito -

Organização denuncia empresário por ameaças e revela que ele é irmão de auditor federal que fiscalizou a instituição no Piauí

Uma denúncia criminal protocolada na Polícia Civil do Piauí expõe uma suposta trama que envolve relações familiares, contratos milionários e possíveis conflitos de interesse em investigações no setor de saúde pública. No centro da controvérsia estão dois irmãos: Hamilton de Carvalho, auditor da Controladoria-Geral da União (CGU), e Luis Carvalho, empresário do ramo de fornecimento de medicamentos e equipamentos hospitalares.

O caso ganhou novos contornos quando o Instituto Saúde e Cidadania (ISAC), organização social que administra o Hospital Estadual Dirceu Arcoverde (HEDA) em Parnaíba (distante 333 Km de Teresina) desde julho de 2023, formalizou notícia-crime contra Luis Carvalho por supostos crimes de ameaça, constrangimento e tráfico de influência. A denúncia, de 12 páginas, foi protocolada na última quinta-feira (12/12) e obtida com exclusividade por esta reportagem.

Foto: Reprodução

A cronologia suspeita

A linha do tempo dos eventos levanta questões sobre possível instrumentalização de órgãos de controle. Em maio de 2025, o ISAC apresentou representação formal à CGU questionando a conduta de Hamilton de Carvalho, alegando que o auditor teria "extrapolado suas atribuições funcionais, impondo prazos exíguos para defesa e prejudicando a imagem da entidade". O instituto solicitou a substituição do servidor, abertura de procedimento administrativo e garantia de contraditório.

Quatro meses depois, em setembro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Omni, que teve como um de seus principais alvos justamente o ISAC, a mesma organização que havia questionado a imparcialidade do auditor federal.

A Operação Omni, deflagrada pela Polícia Federal em 2025, investigou supostos desvios de recursos públicos na saúde estadual. Segundo o ISAC, a operação não teria abordado os contratos de maior materialidade financeira identificados pela organização.

O vínculo familiar no centro do conflito

Hamilton de Carvalho ocupa o cargo de Auditor Federal de Finanças e Controle na CGU, órgão responsável por fiscalizar a aplicação de recursos federais transferidos a estados e municípios, incluindo verbas da saúde. Seu irmão, Luis Carvalho, é proprietário da Medfarma, empresa que mantinha contratos de locação de equipamentos hospitalares com o HEDA no valor original de R$ 507 mil mensais.

Segundo a denúncia apresentada à Polícia Civil do Piauí, foi após o ISAC renegociar e posteriormente romper esse contrato - reduzindo-o de R$ 507 mil para R$ 300 mil antes da rescisão por "entrega não satisfatória" - que teriam começado as pressões e ameaças.

"O senhor Luis Carvalho passou a insinuar que deveríamos seguir as orientações dele ou poderíamos ser prejudicados", relata o diretor do ISAC, Alberto Aguiar Santos Neto, no documento. 

Ele descreve reuniões na sede da Medfarma onde teria sido advertido de que sofreria "um preço inimaginável pela audácia de retirar um contrato dele do Estado". Os pagamentos documentados à Medfarma totalizam R$ 3,5 milhões entre outubro de 2024 e novembro de 2025, segundo relatórios anexados à denúncia.

Outras conexões: Junno e João Ricardo da Central de Laudos e Dieg

A Central de Laudos, empresa que recebeu R$ 1,3 milhão em pagamentos segundo dados apresentados na denúncia, também está no centro de uma suposta teia de relações que mistura negócios, política e vínculos familiares. A empresa é de propriedade de Junno Pinheiro, irmão de João Ricardo (Dieg). Apesar dos valores expressivos movimentados pela Central de Laudos, de acordo com a denúncia, a empresa não recebeu o mesmo nível de escrutínio investigativo dispensado a outras de menor materialidade financeira, diferentemente de outros fornecedores com vínculos ao ISAC.

A suposta seletividade investigativa ganha contornos mais intrigantes quando se observa o padrão de quem foi e quem não foi alcançado pela operação policial. Junno Pinheiro, conhecido por seu trânsito entre autoridades policiais e do sistema de Justiça no estado, teria ficado fora do radar investigativo apesar das cifras milionárias. Em contrapartida, seu próprio irmão João Ricardo, rival político e comercial de Junno, foi incluído nas investigações supostamente por suas relações com o ISAC. 

Da mesma forma, Nemésio Freitas Sobreira Neto, empresário da Dias Radiologia que foi ex-funcionário de Junno na Central de Laudos, acabou preso na operação da Polícia Federal justamente por vínculos contratuais com a organização social. A denúncia aponta que empresários ligados ao ISAC foram investigados e presos, enquanto quem também lucrou com contratos públicos milionários, mas possui relações com autoridades, permaneceu intocado. A discrepância alimenta suspeitas sobre critérios de seleção dos alvos investigativos.

Questionamento à CGU

Ficam alguns questionamentos a CGU: Hamilton de Carvalho participou de fiscalizações envolvendo o ISAC ou contratos de saúde no Piauí? Houve declaração formal de impedimento ou suspeição considerando os interesses comerciais do irmão? O servidor foi afastado após a representação de maio? O espaço segue aberto para respostas as dúvidas.

A legislação federal estabelece que servidores públicos devem declarar impedimento ou suspeição quando há interesse direto ou indireto no processo, incluindo vínculos familiares que possam comprometer a imparcialidade. A ausência de afastamento formal em casos dessa natureza configura irregularidade grave e pode anular os atos praticados.

Contratos milionários que teriam sido ignorados pela investigação

Além das acusações contra Luis Carvalho, a denúncia apresenta um levantamento que questiona a seletividade da Operação Omni. O ISAC lista contratos de valores expressivos que, segundo a organização, não receberam atenção investigativa proporcional:

Agudos LTDA (hemodiálise): R$ 1,78 milhão pagos entre agosto de 2024 e novembro de 2025. A denúncia alega existir "possível relação familiar entre o proprietário da empresa e o delegado responsável pela operação", informação não confirmada por esta reportagem, mas que representaria conflito de interesses grave se verificada.

Central de Laudos: R$ 1,3 milhão conforme quebra de sigilo bancário, com valores totais superiores segundo documentação apresentada.

Medfarma: R$ 3,5 milhões em pagamentos documentados.

Em contraste, a Polícia Federal teria dedicado recursos investigativos substanciais à empresa Big Data Health, que, segundo o ISAC, sequer mantém contrato com o hospital-  sua relação se deu exclusivamente com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesapi) para fornecimento de software.

A disputa pelos contratos de Nefrologia

O setor de nefrologia movimenta volumes expressivos no sistema público de saúde. Contratos de hemodiálise representam despesas recorrentes e de longo prazo, historicamente gerando tensões entre gestores públicos e fornecedores privados.

No Piauí, a entrada de organizações sociais na gestão hospitalar alterou relações comerciais estabelecidas há anos. O ISAC relata ter encontrado, ao assumir o HEDA, "colaboradores lotados que não trabalhavam", "desvio de insumos", "grandes números de infecções" e "pacientes acumulados nos corredores".

A organização afirma ter implementado mudanças que resultaram na primeira certificação ONA (Organização Nacional de Acreditação) de um hospital público piauiense, selo que atesta qualidade, segurança e eficiência. Mas essas mudanças, segundo a denúncia, geraram resistências.

Contratos herdados e pressão financeira

Outro elemento técnico apresentado refere-se a contratos preexistentes não previstos no edital de seleção do ISAC. A organização comunicou formalmente à Sesapi sobre "acréscimo de despesas não contempladas" que totalizam mais de R$ 980 mil, solicitando realinhamento de repasses sob pena de tornar a gestão "insustentável".

Entre esses contratos herdados estavam justamente os acordos com a Medfarma, que o ISAC tentou renegociar antes de rescindir.

O que dizem as autoridades

Até o momento, não houve manifestação pública detalhada da Polícia Civil sobre o teor específico da denúncia, que tramita sob pedido de sigilo. A Secretaria de Estado da Saúde do Piauí também não comentou os pontos levantados no documento. 

A pergunta que a Polícia Civil, a Federal e a CGU terão que responder no curso da investigação é como se explicam as disparidades no escrutínio de diferentes fornecedores? As respostas a essas perguntas são fundamentais não apenas para avaliar a denúncia específica contra o servidor da CGU, mas para compreender se as investigações no setor de saúde do Piauí têm sido conduzidas com a imparcialidade e abrangência que o interesse público exige.

A reportagem seguirá acompanhando os desdobramentos conforme surgirem novos elementos.

Procuradas, fontes ligadas à investigação afirmam, em caráter geral, que toda denúncia formal é analisada dentro dos parâmetros legais, e que eventuais questionamentos sobre escopo ou foco podem ser objeto de controle interno e externo, inclusive judicial.

ENTENDA A CRONOLOGIA DO CASO:

Cronologia:

Julho/2023: ISAC assume gestão do HEDA

Maio/2025: ISAC denuncia auditor Hamilton de Carvalho à CGU

Setembro/2025: Operação Omni atinge o ISAC

Dezembro/2025: ISAC denuncia Luis Carvalho (irmão do auditor) à Polícia Civil

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